Dia de visitas
 



E-book Dia dos Pais

Dia de visitas

Amanda Santos


A expressão de roda gigante aparece no rosto dela agora: agoniada, me apertando entre os braços, uma profunda ruga entre os olhos. Se a pequena mecha de cabelo começar a girar entre os seus dedos, eu saberei o que está por vir. E aí está. Logo ela vai começar a me dar algumas “lições valiosas”, como diz vovó. Mas não, permanece calada, e isso é estranho. Não quero tirar os olhos dela, mas a janela do ônibus me chama. As árvores deslizam pela paisagem como fantasmas. 
Sei que ela está zangada, alguém sempre acaba por “ouvir umas verdades” quando estamos indo ver o papai. Aperto o pequeno embrulho que trago no bolso da jaqueta. Estou feliz de imaginar o quanto ele ficará feliz. Levei horas fazendo esse presente e ficou perfeito. 

Descemos do ônibus no mesmo lugar de sempre, onde um curto trajeto a pé nos aguarda. Outras mulheres tentam conversar com mamãe, mas ela não dá atenção, diz que “não prestam”. Não entendo como não prestam, sei que maçãs podres e iogurte vencido não prestam, mas elas e seus filhos parecem perfeitamente saudáveis e simpáticos. De qualquer jeito, confio em mamãe. Os braços magros dela sempre conseguem me carregar quando canso. Ela com certeza presta.

Está frio hoje. As mãos de mamãe seguram com força o capuz contra minha cabeça. O porteiro conversa com ela, falam do jogo de ontem. Eu tento espiar lá dentro, é quase nossa vez de entrar. Tia Ana aparece na porta, abana para mim e nos convida a ir com ela. Gosto da tia Ana, ela adora fazer um jogo onde procura por coisas nas minhas roupas e acaba por me fazer cócegas. É cansativo fazer sempre o mesmo jogo, mas se ela gosta tanto, por que não? Enquanto me apalpa, tia Ana encontra o pequeno embrulho que eu trago no bolso. O pega, como imaginei que faria, e o abre com cuidado. Sorri e pergunta se é um presente. Respondo que sim.

- Já volto com o seu presente. 

Sinto meu estômago revirar. 

- Por quê? 

- Preciso dar uma olhadinha, mas não se preocupe, não vou estragar.

Tia Ana volta-se para mim, afaga meus cabelos, seus olhos parecem um pouco tristes.

- Já volto. Prometo.

Mamãe seca uma lágrima que nem senti ter chorado. Mas diferente de sempre, não fala nada, apenas espera comigo. Felizmente tia Ana volta. O embrulho está refeito e ela o devolve ao meu bolso. Deseja que eu tenha um bom dia e nos deixa ir. 

Sinto que meu coração vai explodir quando passamos pela porta do pátio. Está cheio de gente, crianças. Todos falam muito alto e tenho um súbito pavor de não encontrar meu pai em meio a tanta gente. Mas mamãe me salva, erguendo-me em seus braços como se lesse meus pensamentos. E lá do alto posso ver tudo. Tio Duda acena para nós, volta-se para trás e cutuca meu pai que sorri ao me ver. Mamãe me põe no chão, e eu percorro a distância que nos separa como se voasse. 

- Meu guri.

Papai não é de falar muito, mas sei que “meu guri” significa que está feliz em me ver. Sua barba faz cócegas no meu rosto. Seus braços me erguem lá no alto. Dou tanta risada que meu estômago dói. Quando me põe no chão, ele abraça mamãe. Os olhos dela se enchem de água como sempre e ele a chama de chorona. 

Tio Duda se agacha e levanta a perna da calça me mostrando suas meias brancas, dizendo ter ganhado de presente. Lembro do conteúdo do meu bolso. Papai e mamãe conversam baixinho e ela ainda parece chorar. Hesito por um momento, não gosto nem um pouco quando mamãe chora. Papai sorri para mim, isso me encoraja. Digo que tenho um presente. Ele senta na minha frente e por um momento me envergonho de não ter comprado nada, como o filho do tio Duda que trouxe meias novinhas, mas sei que papai vai gostar. O pequeno embrulho escorrega das minhas mãos para a dele, e parece muito menor agora. Ele abre, e dentro encontra a brilhante e cheirosa trufa de chocolate recheada de morango, seu sabor preferido, e decorada com nossos nomes que eu mesmo escrevi com um pincel bem fininho. Papai sorri e me abraça tão forte que prendo a respiração. Mas, diferente de antes, a trufa está rachada ao meio. Tia Ana estragou tudo. Lamento em silêncio. Papai não gosta de me ver chorar.

***

Amanda Santos, natural de São Jerônimo, professora de inglês, estudante de Artes Visuais na UFRGS. Tem pesquisa em Contos de Fadas e Surrealismo. Participa do Curso Livre de Formação de Escritores da Editora Metamorfose.


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